*Por Francis Ivanovich

Fotografia de Ricardo Stuckert
A fotografia do ex-presidente Lula cercado por alimentos no assentamento MST, Che Guevara, no município de Moreno, na Região Metropolitana do Recife, num clique magistral de Ricardo Stukert, considero uma das mais emblemáticas metáforas visuais nestes tempos de fome.
O eterno mestre da fotografia, o francês quase centenário Henri Cartier-Bresson (1908-2004) disse que “Fotografar é colocar na mesma linha a cabeça, o olho e o coração”. Ricardo Stukert cumpriu à risca este ensinamento Bressoniano.
A belíssima fotografia, mais do que efeito obtido pela técnica do fotógrafo e a tecnologia, é resultado de sensibilidade e compromisso ético. Ela revela e se alia ao sentimento de indignação e nos coloca diante de um incômodo retrato: as fomes que fazem doer os estômagos do Brasil? Além de incômodas e revoltantes, as fomes do Brasil nos dão a certeza de que não é mais possível aceitarmos esse quadro semelhante a uma das pinturas de Bosh. As fomes brasileiras são muitas.
A fome por comida é a primeira, que deve ser saciada prontamente, veloz como na captura da imagem pela lente da câmera. E programas como o autêntico Bolsa Família são muito importantes para o combate ao prato vazio. Saciada esta fome física, o Brasil tem fomes que doem a alma e também devem ser curadas: educação, moradia, saúde, segurança, meio-ambiente, cultura e democracia.
Famintos por livros, cadernos e lápis, o país está mergulhado numa fome perigosa. A desigualdade no acesso ao ensino nos coloca em risco com relação ao futuro. A pandemia agravou ainda mais o descaso com a educação. Milhares de crianças, adolescentes e jovens com apetite por uma educação igualitária e de qualidade. Recentemente o atual ministro da educação, Milton Ribeiro teve a ousadia de afirmar que a universidade é para poucos. Como se universidade fosse caviar. A postura deste senhor só reflete essa fome dolorosa que fragiliza ainda mais o corpo da Nação, lhe provocando a doença da ignorância e servidão.
A outra fome é por teto e terra. Um país acostumado ao banquete latifundiário, grileiro e mais recentemente, da incorporação imobiliária miliciana, fenômeno fortemente presente no Rio de Janeiro. A reforma agrária que jamais se concretizou, o saneamento básico que jamais chegou, a casa própria pela qual o povo tem tanta ânsia. O programa Minha Casa, Minha Vida deve ser fortalecido.
A fome por saúde, que neste governo ficou evidente ser tratada como negócio. A valorização e o fortalecimento do SUS, um exemplo para o mundo em política de saúde pública. O combate à corrupção na Saúde, um desafio que deve ser enfrentado com todo o remédio possível. Vacinando o sistema contra esse vírus, dando acesso à população aos serviços essenciais. Essa fome é questão de vida.
A fome por paz. A violência nas entranhas do país. O assassinato de jovens, do povo preto, dos povos indígenas, do camponês, das lideranças comunitárias. A insegurança alimentada por uma política de exclusão, que prega o armamento dos poderosos. Segundo pesquisa de 2020 do IPEA, no Brasil, os homicídios são a principal causa de mortalidade de jovens (pessoas entre 15 a 29 anos). Foram 30.873 jovens vítimas de homicídios no ano de 2018, o que significa uma taxa de 60,4 homicídios a cada 100 mil jovens e 53,3% do total de homicídios do país. Uma triste fome que ameaça nossa juventude.
A fome ambiental que preocupa o mundo. Vemos a cada ano nossa biodiversidade ser extinta por causa de uma política absurda, que não se preocupa como o nosso meio-ambiente. Este governo é um dos principais responsáveis pela grave situação da Amazônia, por exemplo. Recentes notícias dão conta de que o desmatamento da Amazônia está reduzindo as chuvas mais do que o previsto, como aponta um novo estudo internacional liderado pela pesquisadora italiana Mara Baudena, do Instituto de Ciências da Atmosfera e do Clima do Conselho Nacional de Pesquisas de Turim (CNR-Isac) e que foi publicado no “Global Change Biology”. Essa fome precisa urgentemente de uma política séria e responsável, caso contrário o Brasil poderá ver agravada a questão hídrica, e isso pode nos trazer sérias e graves consequências.
A fome por cultura. Um governo que destruiu nossa cultura de maneira impressionante. Nem Gláuber, nosso genial cineasta, poderia prever esta película horrenda. Como é possível a cultura do Brasil, tão rica, tão diversa, nas mãos de pessoas que são incapazes de pensar. A cultura para essa gente é o modelo alemão hitlerista, de valorização de símbolos ufanistas e medíocres. O povo brasileiro com sua cultura riquíssima necessita de uma política de oportunidades e justiça, sem privilegiar uma casta ou categoria. A mesa da cultura é farta, e este jantar não é para poucos. A cultura é festa e sobretudo trabalho, a cultura gera empregos, cidadania, identidade. “A gente não só quer comida”, nos lembra a conhecida música dos Titãs.
A fome da democracia, da justiça. O Brasil jamais será cozinha de uma receita fascista. Esse tempero aqui não pega. O nosso sabor é convívio com as diferenças, pluralidade. O respeito pelas instituições, ao jogo eleitoral, aos resultados das urnas eletrônicas. Nosso cardápio não oferece osso, mas carne de primeira, e o prato principal é a liberdade.
As fomes do Brasil são muitas. A foto de Lula cercada por alimentos é o recado explícito de um líder que terá muito trabalho pela frente. Lula terá de ser o master chefe desse desafio gigante. Confio no cozinheiro. Ele sabe mexer a panela. O caldo não vai entornar. Enquanto isso, temos de amargar esse prato salgado, essa comida estragada que nos deixa mais famintos. No entanto, o fogo foi aceso, fogo sagrado que cozinha os alimentos, nos faz sentar à mesa para, em comunhão, saborearmos a esperança.
*Francis Ivanovich é jornalista no GT da Comunicação de RS, diretor de cinema, teatro e autor.