*Por Francis Ivanovich:
Aos domingos, muitos brasileiros sentam-se diante diante da TV para assistir o Topa Tudo Por Dinheiro, programa famoso onde ouvimos o bordão criado pelo apresentador Sílvio Santos: Quem quer dinheiro? Sílvio arremessa aviõezinhos feitos com notas de 50 e 100 reais, que voam sobre as colegas de trabalho, que os disputam no auditório, num espetáculo bizarro. A Netflix acaba de lançar um desses aviõezinhos sobre nós, feitos com notas de dólar: a série Round 6.
Há alguns anos escrevo para a infância e juventude, minhas peças teatrais sobre prevenção de uso de drogas, contra o Bullying, Gravidez na Adolescência, incentivo à leitura, prevenção do suicídio na adolescência, educação financeira, escolha profissional, infância, etc já foram apresentadas em milhares de escolas no Brasil.
Eu não posso concordar com uma série que associa brincadeiras infantis à assassinatos num jogo valendo dinheiro. Como artista, cidadão, num país que acaba de viver um verdadeiro genocídio, com mais de 600 mil mortos, não posso somar voz ao coro dos adoradores desta série de que despreza a vida e só tem um objetivo, dar lucro.
Segundo documento interno da Netflix, revelado pelo site de negócios Bloomberg, esta série coreana por ser lucrativa vai acrescer cerca de US$ 900 milhões de valor de mercado à Netflix, traduzindo, o equivalente a quase 5 bilhões de reais.
O que é esta série afinal?
Conta a história de pessoas que estão seriamente endividadas, vivendo crises familiares, e acabam sendo convidadas, ou forçadas, para participar de um jogo cuja recompensa será uma fortuna que resolverá todos seus problemas financeiros. Os que aceitam participar são sedados e levados para um ilha onde participarão de partidas que remetem às brincadeiras de infância, como Batatinha 1, 2, 3.
A eliminação de cada jogador é seu assassinato, o fim de sua vida representa mais dinheiro dentro de um cofre transparente no formato de um porquinho, que será entregue aos que sobreviverem. Até este símbolo de poupança na sociedade ocidental, o porquinho, que muitas gerações de crianças através dele foram ensinadas a economizar, é usada de maneira cínica, quase desprezível.
Muitos dirão que o filme é a metáfora da sociedade contemporânea, que é uma crítica ao capitalismo selvagem, blá, blá, blá... Mentira. O porquinho que se enche de dinheiro quando um jogador é executado friamente com um tiro na cabeça, nada mais é do que a busca pelo lucro fácil, pela alta cotação de suas ações no mercado. Isto é lamentável. Há limites para tudo nesta vida.
Hoje o mundo é gerido por muitas corporações adoradoras do lucro, empresas que posam de sustentáveis, mas que na prática não atuam de forma ética, respeito à liberdade, à vida. Acabam impondo, goela abaixo da sociedade, suas mentiras, seus disfarces, suas maquiadas intenções financeiras. Round 6 não é entretenimento, é culto ao lucro e à morte.
O que vale um filme ser tão bem produzido com uma tecnologia incrível, imagens espetaculares, som perfeito, atores talentosos, direção exata, se não há nenhum compromisso ético?
Não será surpresa, infelizmente, vermos adolescentes pelo mundo afora reproduzindo as lamentáveis cenas de Round 6. Vivemos um séria crise humanitária mundial, e nós enquanto comunicadores, artistas temos de ter responsabilidade, ética com nossas crianças, adolescentes, e gerações futuras.
Sou contra a censura e sou a favor da liberdade de expressão, mas posso protestar. Em protesto, cancelei minha assinatura Netflix. Talvez meu gesto contribua um pouquinho para que os executivos da empresa ao sentarem à mesa para a escolha de uma nova produção, reflitam se vale à pena. A Netflix já produziu filmes maravilhosos.
O lucro é importante, mas não é tudo. A vida não tem preço, mas em Round 6, a nossa vida não vale nada.
*Francis Ivanovich é jornalista, cineasta e editor deste Blog RS RJ.