Hermanos, pero no mucho: a estrutura racista argentina

Por Carlos Santana:

Assistimos a final da Copa do Mundo do Catar entre Argentina e França não apenas ainda amargando o gosto de termos visto, mais uma vez, nossa seleção parar nas quartas de final, mas também diante de duas potências do futebol mundial e todo debate que sempre surge sobre a prioridade de para quem torcer na ausência do Brasil.

É certo que a rivalidade entre brasileiros e argentinos não é algo inventado pela Globo, como querem alguns. Há nessa história uma questões políticas, culturais e raciais que se arrastam desde o século XIX.

Fragmentados e independentes dos territórios espanhóis nas Américas, que se proclamam repúblicas através das revoltas das elites locais descendentes da Espanha, inicia-se as críticas ao Brasil por manter seu território unido sob a coroa da casa dos Bragança: de um lado, caudilhos republicanos enxergam o império brasileiro como um atraso, carregado de todo o ranço europeu; do outro, a corte de Pedro II vê barbárie entre as nações que surgiam na vizinhança como repúblicas.

Entretanto, no decorrer do século, a política argentina sobre seus escravizados foi de apagamento total. Abolido o trabalho escravo pouco mais de 30 anos antes do feito no Brasil, a corrida para o embranquecimento da população argentina foi intensa. Os resultados estão hoje entre nós: de uma população cujo contingente negro era de 50% naquele período, em 2022 chega a 3%.

Podemos falar justamente em não só apagamento gradual dos traços da população negra na Argentina, como também em políticas de extermínio: durante a Guerra do Paraguai, as linhas de frente do exército argentino eram compostas por homens pretos, sob promessa de liberdade após cinco anos, em caso de voltarem com vida.

A política de imigração branca da Europa é parte também da história brasileira no mesmo período, principalmente em regiões do interior de São Paulo e nos estados da região Sul. Isso, porém, não exime a população de tais territórios brasileiros de serem vistos por argentinos como “macacos”. Circulou na internet durante a reta final da Copa do Mundo uma capa de jornal esportivo argentino cujo título era “Que venham os macacos!”, referência racista à seleção brasileira.

A pátria grande descrita por Darcy Ribeiro possui suas particularidades territoriais que precisam de olhares aprofundados. As Américas foram destino de milhões de homens e mulheres escravizados, sequestrados da África para aqui serem humilhados, torturados e desumanizados. E é essa profundidade que a final da Copa proporciona aos mais dispostas a mergulhar: a França, berço dos estudos higienistas no século XIX que respaldaram as políticas racistas também na Argentina, possui em sua seleção, hoje, jogadores negros, cuja maioria tem sua filiação de origem africana; alguns nasceram lá e possuem dupla nacionalidade, como no caso de Karim Benzema, que fez uma crítica contundente no início deste ano: quando ganham, eles são franceses, mas quando perdem, tornam-se imigrantes.

No Brasil, cerca de 60% da população é negra. Longe de sermos um país exemplar sobre ausência do racismo, é evidente o esforço dos movimentos negros brasileiros para a proposta de políticas pública que combatam efetivamento o racismo em nosso país. Ao lado, na Argentina, leis antirracistas não existem.

A história dos países da América Latina precisa ser reescrita no cotidiano do combate aos crimes raciais que destruíram e continuam a destruir muitos sonhos, expressões e psicológicos. Importante que o esporte proporcione momento de reflexão como esse para que sejam reforçadas os esforços do povo negro em sua resistência entre as estruturas racistas.

*Carlos Santana é ex-deputado federal por cinco mandatos pelo PT-RJ; Presidente do Sindicato dos Ferroviários da Central do Brasil; Presidente estadual da CUT-RJ; Professor universitário; Doutor em História pela UFRJ e Bacharel em Direito.

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